Representações e marcas da barbárie

<i>Ilse Losa</i>: Vida e Obra – <i>Sob Céus Estranhos, de Ramiro Teixeira</i>

Domingos Lobo

É raro, muito raro, um autor exercer sobre o crí­tico tão forte fas­cínio como aquele que en­con­tramos neste texto de Ra­miro Tei­xeira ba­seado na vida e obra da es­cri­tora Ilse Losa. Fas­ci­nado, pro­fundo, diria, e tão vasto ele se nos afi­gura nesta obra mo­nu­mental (566 pá­ginas pro­fu­sa­mente ilus­tradas com fo­to­gra­fias da au­tora, de es­cri­tores seus con­tem­po­râ­neos, capas das 1ªs edi­ções dos seus li­vros, do tempo e do per­curso de vida e obra da au­tora de «O Mundo em que Vivi»), que leva o crí­tico para além da aná­lise li­te­rária dessa obra, mas, igual­mente, se trans­muda e per­corre, com idên­tico labor ofi­cinal, os ca­mi­nhos da bi­o­grafia. E são essas duas com­po­nentes, a função crí­tica ri­go­rosa e a do bió­grafo in­for­mado e atento, que tornam este livro um caso sério e in­comum no nosso ac­tual pa­no­rama edi­to­rial.

En­quanto bió­grafo da au­tora de «Sob Céus Es­tra­nhos», Ra­miro Tei­xeira per­corre com de­mo­rada per­se­ve­rança e sa­geza ar­gu­men­ta­tiva, com um caudal de in­for­ma­ções só pos­sível de re­colha tão fi­de­digna e fac­tual, pela pro­xi­mi­dade que man­teve com a au­tora, en­quanto amigo e fre­quen­tador do meio em que esta se movia. Assim, não é apenas a obra da es­cri­tora, a aná­lise apro­fun­dada e exem­plar que este livro aborda, mas igual­mente a de um per­curso sin­gular de vida e afir­mação cul­tural, con­quis­tando a pulso, pela in­te­li­gência, pela ge­ne­ro­si­dade, pelo po­si­ci­o­na­mento cí­vico, numa ci­dade con­ser­va­dora como era o Porto em 1934, o res­peito e ad­mi­ração da in­te­lec­tu­a­li­dade mais in­flu­ente do burgo. É nesse ano que a então jovem Ilse Li­e­blich, chega ao Porto, fu­gindo ao terror que o nazi-fas­cismo de­se­nhava na Ale­manha, vindo ao en­contro de seu irmão Ernst, que na ci­dade vivia desde 1932. Esse per­curso, cuja in­te­gração na so­ci­e­dade por­tu­ense de então não foi fácil, é fi­xado nesta obra de forma mo­delar.

Este livro é, igual­mente, feito da me­mória his­tó­rica, po­lí­tica, cul­tural desses tempos ad­versos, cujos o autor cir­cuns­creve, com rigor his­tó­rico, desde o nas­ci­mento de Ilse, em 1913, até ao 25 de Abril de 1974, numa cro­no­logia que abarca com pro­fusão de ele­mentos, in­vul­gares em obras do gé­nero, os mais sig­ni­fi­ca­tivos acon­te­ci­mentos que mol­daram a ge­o­grafia so­cial, moral, es­té­tica e po­lí­tica de grande parte do sé­culo XX, fo­cando, na­tu­ral­mente, o seu pe­ríodo mais ter­rível mas sem deixar de as­si­nalar o que de mais pro­fícuo, li­ber­tador e cri­a­tivo esse sé­culo con­teve, tanto no do­mínio da li­te­ra­tura, como no ter­ri­tório mais vasto das artes, das ci­ên­cias e das ideias. Di­ríamos que este livro de Ra­miro Tei­xeira, tendo como alvo e pre­texto a aná­lise da obra de Ilse Losa, serve-se do que nesse es­pólio é me­mória e fe­rida, para traçar em pa­ra­lelo a his­tória im­pres­siva do sé­culo XX, per­mi­tindo ao leitor, desse modo, si­tuar a au­tora e os seus com­pa­nheiros de jor­nada nesse amplo con­texto, tor­nando-os igual­mente agentes e cro­nistas pri­vi­le­gi­ados desses tempos de es­panto e so­bres­salto.

Mais do que um en­saio li­te­rário sobre a obra de Ilse Losa, Ra­miro Tei­xeira as­si­nala de forma exaus­tiva os mo­vi­mentos cul­tu­rais da pri­meira me­tade do sé­culo XX, as de­rivas so­ciais e po­lí­ticas que lhes deram origem e a li­gação e in­fluência que os es­cri­tores ti­veram no de­senho po­lí­tico/​ide­o­ló­gico da Eu­ropa do pós 2.ª Guerra Mun­dial, ou nessas pre­missas co­lheram algum pro­ta­go­nismo, quer de­nun­ci­ando a bar­bárie, quer com ela pac­tu­ando numa cor­rupta su­bal­ter­ni­dade ou, ainda, como no caso de Ilse Losa, sendo ví­timas da opressão. Mas é sobre o nazi-fas­cismo alemão, sobre as con­sequên­cias que este teve sobre a Eu­ropa e o mundo, com as ra­mi­fi­ca­ções co­nhe­cidas em Itália, Por­tugal e Es­panha, que Ra­miro Tei­xeira mais se de­mora, con­ju­gando nomes, in­ven­ta­ri­ando pro­cessos, de­nun­ci­ando prá­ticas. Quando se cum­prem 70 anos sobre o fim do ho­lo­causto nazi-fas­cista, e quando na Eu­ropa al­guns si­nais, res­sur­rectos fan­tasmas, tentam emergir e querer de novo impor sobre os povos a sua pata bes­tial, o re­gresso à me­mória desses tempos, com nomes, datas, pro­pó­sitos e cir­cuns­tân­cias, não será des­pi­ci­enda ta­refa.

Do mesmo modo, é também a questão ju­daica que aflora ní­tida nos traços desta nar­ra­tiva en­saís­tica pela obra e bi­o­grafia de Ilse Losa; o horror do na­zismo, os bár­baros li­ni­mentos que lhe ser­viram de pre­texto, os di­lemas mo­rais, so­ciais e po­lí­ticos que esse tempo trans­portou e que, ainda hoje, se re­flectem e marcam o nosso tempo. Essa me­mória fe­rida, esse per­tur­bante do­cu­mento de de­núncia an­ti­fas­cista, sem traços de con­ta­mi­nação epi­go­nista, antes re­lato sen­si­tivo e cla­ri­vi­dente de uma cir­cuns­tância vi­vida, está pa­tente em dois grandes textos de Ilse Losa: «O Mundo em que Vivi» e «Rio Sem Ponte». Neles des­co­brimos essa de­so­lação, essa at­mos­fera ir­res­pi­rável, esse ab­surdo que os al­vores do na­zismo trans­por­tavam, e os ho­ri­zontes fe­chados, a des­truição que a guerra pro­duziu nos es­paços iden­ti­tá­rios, tor­nando-os alheios e ir­re­co­nhe­cí­veis. Alves Redol nos li­vros «Nasci Com Pas­sa­porte de Tu­rista» e «O Ca­valo Es­pan­tado» aflora também, co­ra­jo­sa­mente, a questão ju­daica, a bar­bárie e o re­tro­cesso ci­vi­li­za­ci­onal que a guerra e a as­censão do nazi-fas­cismo re­pre­sen­taram para os povos da Eu­ropa.

Ra­miro Tei­xeira fala-nos neste livro de Ilse Losa, do seu tempo, do ma­rido, o ar­qui­tecto Ar­ménio Losa, também ele um re­co­nhe­cido opo­sitor do re­gime; de Óscar Lopes, ao qual, en­quanto seu pro­fessor, se terá fi­cado a dever, entre ou­tros con­tri­butos de ordem li­te­rária e afins, o bri­lhan­tismo do por­tu­guês que os li­vros da au­tora de «O Barco Afun­dado» am­pla­mente exibem; a in­vo­cação e o re­co­nhe­ci­mento de um pintor es­que­cido Do­min­guez Al­varez, e de uma pa­nó­plia de ar­tistas e in­te­lec­tuais que per­cor­reram, de modo cúm­plice ou aflu­ente, o iti­ne­rário desta es­cri­tora sin­gular que no Porto, sob esses es­tra­nhos céus, cons­truiu uma obra exem­plar e ainda hoje re­le­vante. Foi, igual­mente, na par­ti­cu­la­ri­dade da es­crita in­fanto/​ju­venil, que o ta­lento li­te­rário de Ilse Losa se re­velou de­ter­mi­nante, re­no­vando um gé­nero que, ao tempo, con­vo­cava entre os es­cribas in­dí­genas apenas tex­ti­nhos sem lastro, pe­da­go­gi­ca­mente in­ci­pi­entes e in­cur­sões pouco con­victas. Res­salva-se, mais uma vez, Alves Redol que ao gé­nero de­dicou al­guns im­por­tantes tí­tulos da sua vasta obra.

Não de­vemos es­quecer, Ra­miro Tei­xeira não o faz, a im­por­tância que Ilse Losa teve na di­vul­gação, entre nós, de obras de al­guns dos au­tores de língua ger­mâ­nica mais re­le­vantes: Thomas Man, Ber­tolt Brecht, Martin Walser, Hein­rich Böll, entre ou­tros.

Mais do que um en­saio, este livro de Ra­miro Tei­xeira é um do­cu­mento sobre a his­tória do sé­culo XX, cons­truído sem ce­dên­cias nem ine­xac­ti­dões no que, dessa me­mória, é es­sência e con­junção. Amiúde cáus­tico, de­mo­lidor, mas com su­fi­ci­ente margem de pro­gressão di­a­léc­tica. Se a língua de Ra­miro Tei­xeira nos pa­rece, a es­paços, in­vestir nos ter­ri­tó­rios do pri­vado, essa par­ti­cu­la­ri­dade se­mân­tica con­tribui para a tornar mais ágil, clara e aces­sível a lei­tores menos des­tros pelos ca­mi­nhos da crí­tica li­te­rária e aflu­entes.

Um do­cu­mento im­pres­cin­dível para o en­ten­di­mento de uma obra, do seu tempo e lugar de ges­tação, e da his­tória de um sé­culo de pro­dí­gios e de todas as con­vul­sões.

 

Ilse Losa: Vida e Obra Sob Céus Es­tra­nhos, de Ra­miro Tei­xeira

Edição: As­so­ci­ação de Jor­na­listas e Ho­mens de Le­tras do Porto/​2014



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